23 dezembro 2005

uma canção de amor e morte

e junto aos anjos de dezembro vem a morte. sorrateira e rápida, sua forma mais crua. anjos que vêm sem rosto, espalhando a brisa fria sob o céu cinza do fim. e o fim deveria ser digno de memória, nunca um cair inerte sob sedativos no quarto esquisito de um hospital.

acompanho aqueles que choram e negam qualquer possibilidade daqui em diante.

nada a fazer, apenas soluçar sobre o leito.

02 novembro 2005

continua

Na estação reconheço os mesmos rostos que você me havia descrito. Traços de gente simples e quieta, gestos e abraços carinhosos. Na multidão, que agora estica as pernas em piso imóvel, desvio das recepções calorosas.

Caminho rumo ao Centro. Leio nas placas os nomes das ruas que você me cansou de dizer e percorro o trajeto imaginário que suas pernas desenharam um dia. Sinto o cheiro dos queijos pendurados à mostra nas mercearias da parte velha da cidade. Vejo que, mal se vai o dia, as luzes vermelhas do amor brilham nos luminosos dos hotéis baratos.

Alcanço a praça e ela já não é a mesma. Você mentiu quando falou das flores no jardim, do realejo e do lambe-lambe. Interrompo o andar apressado de um senhor e o faço tirar os olhos do jornal. Pergunto sobre o coreto e ele diz que foi desmanchado ainda no século passado, quando a seresta foi sepultada no túmulo do último flautista da cidade.

Ele continua seu lamento e o acompanho com os olhos até o momento em que desce da calçada para atravessar a avenida e em passos firmes se lança em meio aos carros. Ouço seu último gemido quando é lançado para o alto seguidas vezes por uma comitiva de limusines negras e agradeço aos curiosos que se aglomeram ao redor do corpo deixando livre o horizonte de ruas margeadas por edifícios tortos.

Desfruto este instante de solidão cabisbaixo, certo de que não tropeçarei em alguém, e esqueço que estou em território inimigo.

27 outubro 2005

abstrato

em cada antena instalada na copa dos edifícios pisca uma luz azulada. e todas as luzes da avenida apagam e acendem numa sincronia natalina, fazendo brotar no céu estrelas involuntárias. aquelas que eram encarregadas de aparecer toda noite se cansaram do esforço tremendo que é ter destaque no céu branco iluminado da metrópole acesa.

durante o dia as pessoas caminham impotentes e multiplicam seu tamanho centenas de vezes para alcançar a luz que ainda escapa entre as frestas das nuvens. quando olham para cima e se dão conta de que o relógio no topo do prédio mostra números do tamanho que nenhuma delas será em vida, adiantam o passo e descem até encontrar paredes circulares de concreto e aço. lá embaixo o ar que respiram já foi usado muitas vezes antes e alguém se esqueceu de trocá-lo.

viajam velozes em trajetos de cores imaginárias e nomes lúdicos. isto as consola. mas ainda que desçam no paraíso, quando emergirem serão menores que as horas. às pessoas só caberá aceitar o alçapão que armaram como demonstração de esperteza.

04 outubro 2005

Manifesto Mimeógrafo

Este documento visa deflagrar uma onda de fotocopiagens revolucionária, em certo sentido promovendo o livre acesso a um meio de difusão de idéias e defendendo a quebra do domínio de corporações multinacionais sobre a difusão do pensamento.


  • Pela democratização da palavra escrita
  • Pela valorização do que objetiva ser público
  • Pelo desenvolvimento e utilização do olfato como sentido fundamental à memória
  • Contra o oligopólio das corporações da fotocópia
  • Pela cópia indiscriminada e sem direitos reservados em qualquer espaço da cidade
  • Pelo domínio da tecnologia livre e para uma maior interatividade ser-humano+máquina

Mimeografe!

Vitória, 04 de outubro de 2005

16 setembro 2005

balanço

duzentos e cinquenta caracteres não é o suficiente para agradecer às pessoas que tornaram sua vida melhor nos quatro anos de universidade. e então me pedem isso. eu consegui, satisfatório o suficiente para um convite de formatura. mostro:

"Às mulheres da minha vida. Mãe, Vó e Irmã, pela confiança, sensibilidade e regulagens. Ao meu pai. Aos professores e funcionários pela convivência fraterna e igualitária. Aos grandes amigos por fazermos parte dos mesmos lugares no mesmo momento."

graças ao esforço tremendo que é agradecer e pela insensatez que é agradecer de forma incompleta, faço mais aqui.

"Ao Vítor Lopes, ao Rodrigo Oliveira e ao Rodrigo Daniel pelas manhãs, tardes e noites indescritíveis, pelos garrafões de vinho, pelas cervejas, pelas refeições que compartilhamos. Ao Vitor Lopes pela relação duradoura e profícua. A todos que passaram pelo Cacos e pelo movimento estudantil de comunicação social, despertando a insatisfação que nos move. Às pessoas do Grav, do Falcatrua, do Entrementes. À Maytê pelo muito tempo juntos e além."

29 agosto 2005

sãpôu

o que me atrai no funk e no rap é o sample. não apenas isto, mas principalmente. quando racionais mcs colocam ela partiu, do tim maia, como base para homem na estrada; e afrika bambaataa, muito antes, em 1982, usa um pedacinho de trans-europe express, do kraftwerk de 1977, fica evidente o quanto, além de fazerem música, os caras ouvem e conhecem música. seria interessante que os discos do racionais viessem acompanhados por um livreto contendo as referências e a origem dos sons utilizados pelo kl jay, seria como um teste de dna, um atestado de erudição musical.

mas acho que isto nunca foi posto em prática. logo, nos resta a emoção de descobrir num som que displicentes escutamos reminiscências de outra voz, outro tempo. e contar para os mais próximos.

28 agosto 2005

hoje

lendo Tiempo Presente, livro da Beatriz Sarlo, intelectual argentina, trazido diretamente de Buenos Aires por Vitor Lopes. Tem um trecho legal no qual, falando de "povo", ela cita o Maffesoli:

"No hay pueblo, dice Maffesoli, sino grupos que, como en un caleidoscopio, toman configuraciones distintas que duran lo que dura el acto que los convoca: los cristales, antes estables, del pueblo, se reordenan formando figuras intensas pero efímeras."

o que remete às manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus em Vitória e ao entusiasmo com direito a matéria em jornal sobre a retomada do movimento estudantil. creio que alguma movimentação só acontecerá quando um inimigo muito cruel, injusto e bem delineado aparecer. além disso será necessário enxergar chances claras de vitória. do contrário, grupos tão dissonantes como os que víamos nas passeatas continuarão distantes.

26 agosto 2005

corra

você e seu bom humor desgraçado. finge como uma puta, como um adolescente se masturbando. longe eu sei que nada vai bem. que a cidade desconhecida é ainda mais estranha quando se está só. e você está abandonado, ainda com medo do que pode encontrar pelo caminho. abaixe essa cabeça, esconda-se atrás de livros, jornais e programas do teatro enquanto bebe uma cerveja preta. de madrugada não tente dormir, não seja idiota. ela dorme ao lado abraçado a outro.

saia daí. junte suas coisas. pegue um trem. tenho um amigo que comeu uma mulher no vagão restaurante, nem tudo está perdido. lembre daquelas frases ridículas que alguns cristãos desocupados usam para que nunca percamos a esperança no futuro. não esqueça que o futuro é o fim. e ela te fez atingi-lo muito antes do que esperava.

20 agosto 2005

saiba como vive a outra metade

Imagine cidadãos desafortunados, simultaneamente dominados e capazes de amedrontar os dominadores. Homens e mulheres cuja atenção pode ser desviada para imagens atraentes, shows de toda espécie ou mesmo fogos de artifício. Pense num líder isolado numa torre, protegido junto aos mais abastados, todos vivendo como se a vida estivesse circunscrita ao blindex de 10mm de espessura que os separa das ruas. E nas ruas podem estar latino-americanos, árabes, africanos ou zumbis.

Acompanhe a evolução. Primeiro agem instintivamente, aos poucos tomam consciência dos seus atos, aprendem a manejar instrumentos, sentem compaixão por seus iguais, desejam vingança, medem seus atos e tornam-se arrojados, indisciplinados, tentam alcançar a torre e derrubá-la com os dominadores. Isto ainda não aconteceu com os latino-americanos, ou com os árabes, nem africanos, mas com os zumbis de George A. Romero, em Terra dos Mortos.

Do primeiro filme do gênero - A Noite dos Mortos-Vivos, dirigido por Romero e lançado em 1968 - até hoje, foram 37 anos até que os comedores de carne humana tomassem conhecimento de sua condição desfavorável e decidissem transformar sua realidade.

As metáforas desenvolvidas em Terra dos Mortos por Romero, criador do evangelho e das regras dos filmes de zumbis, são sublimes. Existe uma torre símbolo da riqueza e do poder; um líder que do topo vigia as fronteiras; uma cidade habitada por seres humanos excluídos; e os zumbis, mantidos afastados sem direitos, sem um lugar. É um conto macabro pós 11 de setembro. Ainda mais inquisidor porque o diretor ama os seres que criou e permite que os excluídos vençam pelo menos no filme.

Os fogos de artifício atraem o olhar dos zumbis que se tornam vítimas fáceis para os guardiões da cidade. Funcionam como instrumentos alienantes, como mentiras plantadas e difundidas pela mídia, como ajudas humanitárias aos países pobres. O medo dos seres humanos admite a intervenção da classe dominante para que a ordem e a vida sejam preservadas, não importa em quais condições. E há o embate, a invasão pelos antes sub-desenvolvidos, agora em desenvolvimento, do lugar reservado aos desenvolvidos. A torre cai, mas os mortos-vivos ainda não encontraram seu lugar.

17 agosto 2005

o rap é a trilha

Uma banda é realmente eficiente e digna de um lugar ao sol quando empolga quem não conhece nenhuma letra, nem ao menos um acorde. Ela é digna de respeito quando, fora do seu ambiente, domina o espetáculo e leva sob controle o público e o som. É sincera quando contagia os que estão próximos e deixa transparecer o tesão com que trabalha.

Eu gosto de rap, mas não esperava gostar tanto de um grupo capixaba tocando em um teatro num bairro de classe média alta. O Irmandade S/A surpreendeu. Surpreendeu este que escreve e talvez outros garotos e garotas do bairro de classe média alta, mas não a maioria dos presentes, mais ou menos 150 pessoas fiéis às rimas e aos samples do Dj Jack.

As bases variaram de batidas densas a intervalos bem humorados com soul music americana dos 70 (parecia Jackson Five) e música brega-romântica brasileira do mesmo período. Os temas talvez soem batidos: exaltação do rap e da cultura hip-hop, prisões, drogas e voltas por cima, conscientização, mas os versos não são arquitetados de forma óbvia e soam bem nas vozes claras e ferozes de Shimú e Adicto. Fogem uma vez ao comum e constróem uma ótima música sobre a dificuldade de arranjar bons shows e alguma grana com o rap.
A religião e o hip-hop são as saídas indicadas, as instituições que podem libertar das drogas e conceder paz e respeito. No hip-hop estão os amigos e o raciocínio. Deus é exaltado à medida que se opõe aos caminhos abertos pelo diabo.

Irmandade S/A segue a sina do hip-hop sob a trilha de raps construídos sobre bases empolgantes e rimas fortes e claras.

15 agosto 2005

ocupação

o tempo para ele era vertical. contava os dias no sobe e desce do edifício de corredores verdes, de lâmpadas com sensores de movimento e extintores de incêndio com prazo de validade expirado. não recebia salário para tanto. sentia-se só no aperto do seu quarto e sala. rodava, preenchendo com o movimento do corpo todos os ângulos, sentido horário e anti-horário, as diagonais, todos os metros quadrados do apartamento. mas não bastava e saía.

investia todo seu potencial no elevador do prédio e era comum encontrá-lo ali nas tardes de domingo em que o tédio sobressaía. tornou-se íntimo daquele espaço e sob a luz difusa e com a ajuda do espelho conhecia muito bem todos os moradores e as visitas que os moradores recebiam. sabia que a garota do 801 só fazia a compra do mês próximo ao dia vinte. pode parecer bobagem mas se ela compra com o cartão de crédito, a fatura chega no dia vinte do mês seguinte e isto é uma forma de protelar a vida por 30 dias, pensava.

conversava e ouvia histórias. o condomínio, em reunião, creditava a ele a harmonia dos traslados de elevador e o fim daquele papo sobre previsão do tempo. a barba cresceu, colocaram um banquinho para que suas pernas titubeantes suportassem um pouco mais.

ele fez amigos ali. e nunca precisou ir aos bares para conversar, nem ao cinema para imaginar fantasias humanas.

07 agosto 2005

bicho do mato

aos poucos foi saindo da cidade. ainda estava nela quando abandonou os supermercados e passou a fazer compras na feira. diversas possibilidades. ele tinha tudo o que precisava bem ali.

a erva-doce! um real a sacolinha e vinha com ciscos e sujeira de terra. achava lindo e comprava todo sábado de manhã. administrava doses homeopáticas do chá a toda família, sete dias até o próximo sábado. e comprava mesmo no verão, quando era mais sensato gelar o líquido.

fez amizade com um feirante cuja família havia contribuído na colonização de uma pequena cidade nas montanhas. três gerações tratando com mãos carinhosas aquele chão verde e o fogão marrom. terra repleta de galhos frágeis com odores inesquecíveis. plantas para perfeitas infusões contra males agressivos. foi quando descobriu a origem da semente que curava os filhos.

a plantinha se levantava quarenta centímetros do chão e era insegura pela força das mais leves brisas. o cheiro era suave como o pão caseiro artesanalmente construído todas as tardes. e as sementes. pequenas gotas de doçura. ainda deveriam ser postas ao sol para secar. depois o líquido turvo e a decisão categórica de plantar e colher. de viver pisando o chão e se sujando de terra. e o contato dos pés com as folhas secas e da cabeça com o chapéu de palha. as mãos aperfeiçoadas para sovar a massa e delicadas para moldá-la. e a vida não precisou mais ser adoçada com chá todos os dias.

06 agosto 2005

um muro

ele age como se nunca fosse compreendido. e se comporta como único. sabe que nunca irá se identificar com o outro de maneira plena. e vai embora. bebendo cerveja nos bares. fotografando ambientes claros escuros. escutando músicas que foram feitas pra ele.

não esbarra em ninguém na rua. não fala bom dia com os vizinhos. acorda antes e dorme depois. tudo que foge ao seu domínio é culpa deles. sabe fazer o certo e nunca erra. adora romances e odeia histórias narradas por pessoas antigas.

abraça, beija, fala, escuta. diz que gosta, mas nunca ama. sente falta quando perde. sente falta quando tem. sempre tem mas nunca é suficiente. gosta do frio que congela seus movimentos (sempre errados). sente falta do álcool que libera seus movimentos (sempre contidos).

e agora escreve. pra ler. escreve pra ter.

04 agosto 2005

benzição

Sinto o corte frio do machado zunir em meu ouvido, passar rente ao meu ombro. esquerda. direita. esquerda. direita. enquanto forço meus olhos a permanecerem fechados ouço o movimento rápido dos lábios da minha algoz. as palavras exaltam um filho que morreu pra nos salvar e o poder de cura relegado ao instrumento que fecha meu corpo na imagem de uma cruz.

agora ela abre meus olhos. uma senhora de feições sensíveis, uma avó cujo maior poder é reunir todos os domingos as desavenças da família em torno de um frango e um punhado de macarrão. pede para que eu reze com força de vontade e assim o cobrero passa. não gasta mais que cinco dias. digo amém e ela guarda o machado, instrumento da crendice que corta o mal das doenças comuns que médicos não entendem. e despidos de seu orgulho receitam:

_lá no bairro são jorge, perto da igreja, tem uma dona maria benzedeira. cinco dias de reza e isto some.

tradição

sob o sol da tarde, num dia frio, sentar no banco da praça. pedir licença às velhinhas que miram a torre da igreja acompanhando as badaladas do sino da matriz. observar a vida num passo tranquilo. o fluxo de pessoas, seu trajeto diário, o sair da escola, o comprar pão e o fazer o sinal da cruz.

identificar características que marcam aquela gente. seus pudores, estranhamentos, simpatias e acolhimentos. seu jeito de comprar e vender, a arte demorada e silenciosa de negociar. o que não dizem a respeito das coisas. o que não deveriam dizer dos outros.

um ir e vir que murcha com a chegada da noite e do frio implacáveis. e a cidade que suspende a vida pública e se recolhe ao calor da mesa de jantar da família.

03 agosto 2005

duvido

coloco o último disco da banda preferida no discman e deixo a porta bater nas minhas costas. puxo o fecho do casaco até o pescoço e dou o play. gasto alguns minutos moldando meu passo, tentando andar da forma mais suave que posso para o cd não pular. junto comigo saem estudantes do turno da noite. saem do estádio municipal torcedores que acabaram de assistir a um clássico regional, ou apenas a um clássico qualquer. aponto para a fé e remo contra o frio.

a pela branca, sardas. e agora ouve rock. como não pensar que fomos feitos um para o outro? caminho e não consigo me desvencilhar da imagem da voz do olhar. quero aquecer meus pés junto aos dela e ter mil idéias de festas inacreditáveis em lugares abandonados.

desisto de andar quando termina a música. as ruas em silêncio. leito de águas marrons por onde passa a brisa caudalosa do inverno. vejo ladeiras a frente e elas desaguam num céu de estrelas. espero que a lua apareça amanhã ou depois.