24 julho 2010

pt 3

443. Três algarismos gravados na pequena placa pregada na borda direita superior do túmulo de mármore branco. Nascida em 28 de maio de 1960. Morta em 21 de setembro de 1977. Nem 18 anos ainda. 443. Quanto ao número do jazigo, ela não via nenhuma coincidência. "Sempre me guio pelos anjinhos". Apontava um mausoléu alto, cinza, adornado por 3 anjos que podiam ser vistos de qualquer ponto do cemitério municipal. Dez anos depois, pisando sem medo nos túmulos mal-cuidados e me guiando pelos anjinhos, voltei a ler aquela frase e estava escrita exatamente como me lembrava. Agora posso dizer que ela mesma, a frase, punha em prática a teoria que propagandeava. "A simplicidade é a atitude natural das almas sinceras". Nada de jazes, lembranças, saudades, tristezas. Uma compreensão plena da vida como aprendizado. Uma frase incômoda porque parece só poder ter sido escrita pela garota de 17 anos que morreu sabe-se lá se por doença ou acidente. Talvez porque tenha desejado morrer e assim seguiu rumo ao fim que imaginou para si e tomou remédios deitada em sua cama fechou todas as janelas da casa e abriu o gás cortou os pulsos sentada no chão frio do banheiro jogou-se da ponte no ponto mais caudaloso do rio barrento mas muito certamente não se deu um tiro na cabeça nem pulou de um prédio nem se deu 3 facadas no peito e antes de morrer escreveu seu testamento deixo minha coleção de bonecas para minha irmã mais nova e meus discos de rock para a Betânia e aquela saia verde pregueada para a Doralice só quero que me enterrem com o vestido branco de alças sem maquiagem de defunto nem de mulher viva indo para o baile de formatura por favor não invistam em nenhum grande funeral a simplicidade é a atitude natural das almas sinceras. Assim encerrou aquelas linhas que não explicavam o que todos esperavam descobrir mas tratava de deixar como legado a conclusão tão clara e tão certa de que 17 anos foram suficientes para definir o sentido da vida em uma frase tão clara e tão certa quanto deveria ser pratica-la (a frase).

17 julho 2010

pt 2

O carro de som que passou de manhã anunciando se calou estacionado junto ao muro. “O féretro partirá às quatro da matriz”. Féretro. Claustro. Da categoria palavras sinuosas que vão caindo em desuso terminadas em tro. Hoje eu sei que féretro só era féretro pra gente de lá. O caixão sacolejando nas ruas de pedra, empurrado ladeira acima, perseguido – mais do que acompanhado – de perto pelo povo. O ato derradeiro: cruzar a rodovia. Onde já se viu? Atravessar a BR era metonímia local. Era preciso paciência e um ou dois homens de boa vontade sinalizando de cada lado da pista para que os viajantes parassem. O azar maior era morrer na véspera de carnaval. Má sorte dupla. Perder a festa e custar mais pra chegar do lado de lá. Não me lembro de algum motorista ter interrompido seu trajeto para o litoral sem um apito insistente de polícia. Esses eram os costumes e pertenciam unicamente à gente de lá. “A luz no outono é mais bonita”. Esse resto de sol beliscando a foto provavelmente não encostava aqui na estação passada. Os raios refletidos pelo vidro de umas garrafas de vinho largadas junto à parafina dura que as velas derreteram. Restos de góticas noites de bebedeira. Vestígios de alguma saudade manifesta em forma de luz titubeante e efêmera.

13 julho 2010

pt 1

"Vem! Vou te mostrar." E caminhamos correndo entre lápides, mausoléus, alguns despidos de riqueza, a maioria ornamentada com anjos, cruzes, enfeitada com jarros, flores, identificada por fotografias que nunca eram coloridas. "Ela tem o meu nome e morreu com a idade que terei daqui a alguns meses". Era abril, provavelmente, o aniversário dela eu não sei. Nem 18 anos ainda e um destino traçado na fatalidade. A pele tão branca quanto a cal daquele túmulo, que escorria um bocado a cada chuva, pouco resistindo às intempéries. Nós dois de pé, eu sem saber o que dizer diante da foto, da frase e da flor. Certamente foi ela quem trouxe, um ou dois dias antes, aquelas rosas. Rosas! Destoavam dos cravos vizinhos, do mato que crescia nos corredores irregulares entre as construções de concreto, pequenas edificações funestas, às vezes nas quinas, nas frestas, como se fossem os pelos daqueles defuntos cujos parentes já não se importavam, talvez nem se lembrassem como encontrar a ossada que um dia abraçaram e disseram que amavam. "O que você acha? Não é linda?" A morta? A foto da morta? A frase na lápide da morta? A visitante que admira a lápide, a frase e a foto da morta? Eu não saberia responder, exceto com uma cara de sofrimento que poderia ser causado pela pergunta ou pela fatalidade, sensibilidade ao destino da garota e compreensão àquela admiração que na verdade eu não entendia. Longe, lá onde ficava o que toda gente apelidou de gavetas, edifícios de cinco ou seis andares onde se empilhavam cadáveres, criados em um surto de verticalização que poderia equiparar o cemitério à metrópole, amontoava-se um grupo de pessoas de cores sóbrias. Por que nos afastamos? "Já acabou o enterro. Não adianta fazer nada"