25 março 2010

Pensei nisso quando deixei a cidade onde moramos para uma temporada de dez dias naquela província vizinha. Não foi exatamente quando cruzava a ponte sobre o rio que separa os territórios, o que nasci do que escolhi pra viver, mas alguns dias depois. Andava pisando em pedras escorregadias, chovia, acabara de sair de uma sessão de cinema na qual exibiram um thriller policial nada empolgante, ambientado em um território de fronteira. Foi quando me dei conta de que essa, a da fronteira, seria a melhor metáfora de nós dois. Talvez tenha sido o isolamento que me forcei a experimentar; os dias e noites sem falar com ninguém além do necessário para o trabalho que me sugou aqueles dias – e não falar com alguém, aqui onde estou, é desafio dos mais ingratos. Vi outros filmes. Em um deles, um caminhoneiro cruzava solitário fronteiras imaginárias, em nome de um serviço que nem ele sabia bem a que se propunha, mas para o qual lhe pagavam muito bem. Nesse enredo entediante ele se permitia, ao contrário da trama que desenhei pra mim, encontros fortuitos com andarilhos, putas de beira de estrada e outros habitantes fluidos das margens das rodovias. Nesses dias, você me surgiu vez ou outra na tela do computador, na do telefone celular, mas sobrava pouco espaço para que eu imaginasse seu rosto e seu corpo. Eram apenas palavras, e eu evitei estimular essa presença tecnologicamente possível, essa união virtual, como forma de descobrir o quanto ainda era capaz de pensar em você se não fosse obrigado a te ver todos os dias. Ainda não tenho uma resposta. Do que vivi, uma lembrança ainda me acompanha; era um pensamento recorrente naqueles dias. Você na janela do primeiro andar, seu cabelo negro agitado pelo vento, seus olhos pousados na calmaria da rua; e eu do outro lado, atrás da grade cinza, do muro branco, na varanda mal iluminada com o chão decorado por flores de cimento plantadas de modo irregular. Quando você saiu dali, pensei que nunca voltaria a te ver. Mas logo depois você cruzou a linha, atravessou a rua e veio bater aqui. Imagino a porta do guarda-roupa aberta, você escolhendo sua melhor capa de chuva – porque naquele dia também chovia e porque descobri depois que capas de chuva eram uma obsessão colecionável – e seu corpo escorrendo lentamente pelas escadas circulares do edifício.

21 março 2010

"Nada de aeroportos", ela disse. Ele concordou imaginando como seria fazer sexo no saguão vazio do terminal de desembarque. Mas era o oposto disso que acabavam de concluir: romantismo. Por isso o encontro marcado na praça daquela capital europeia. Ela já havia dito que "tudo é naturalmente sofisticado" e ele olhou pela janela, viu os flanelinhas da rua, lembrou do cheiro do esgoto em uma das avenidas movimentadas da cidade e concluiu que sofisticação e fedor não poderiam nunca caminhar juntos. Aquiesceu, como sempre fez, dizendo um sim seguido de uma piadinha. Com ela, havia atingido o ápice de sua ironia, conseguindo equilibrar lindamente elegância e sarcasmo.

o que havia lhe chamado a atenção eram as pernas. tinha um banco verde de madeira na mesma praça. as pernas no banco, ou as pernas fora do banco, quase maiores que o banco. as pernas. decidiu escrever sobre elas, mas logo pensou que era um erro: nunca esse tipo de coisa provocou seu interesse ou literatura. depois houve o branco, o banco branco, onde tudo se confundia como numa aliteração. e assim as noites se seguiram, e nelas ele os bancos e as pernas.

já pelo final, largada na última linha de uma carta: "para um porvir totalmente incerto", a sentença que parou de ser frase e virou destino.

15 março 2010

Quando acordei, você descia as escadas do meu sonho. Era seguida por alguém, mas não me lembro muito bem hoje. Sei que naquela manhã de céu azul, um sábado ou domingo, coloquei a mesa do café-da-manhã no quintal e fui à padaria. Quando voltei, era dezembro, você tinha partido. O queijo inteiro, a manteiga sem marcas, as xícaras limpas e nenhum bilhete. Esperei até o café esfriar. Foi quando percebi que não havia retorno. Tentei dormir novamente e voltar para o sonho. Antes de cochilar, imaginei seus pés pisando as escadas, como se pudesse rebobinar, e tentei recriar os detalhes daquela noite em que estive ausente. Abraçava o sofá com mais força quando ouvia os sons que vinham do andar de cima, descendo os mesmos degraus que você pisaria logo mais. Provavelmente esse alguém você havia encontrado em alguma rua escura do Centro, ele teria dito algo como se quisesse e pudesse te consolar e o resto eu ouvi do andar de baixo, depois que deitei bêbado naquele sofá. De ressaca, ainda te espero nas manhãs de sol, nos sábados ou domingos de quase verão. Mas dessa vez queria que você chegasse trazendo os pães.

12 março 2010

o caso do fusca

Do Doutor Eros meu pai dizia é como o Brasil: grande, mal-acabado e sem futuro. Na rua, os adultos o tratavam com respeito embora não contivessem um risinho engraçado depois de algum trejeito menos viril. Comentavam ainda os alunos mais velhos do colégio é veado. Era também advogado, essa casta tão pura dos profissionais liberais. E vivia bem assim, desfilando seu corpanzil pelo centro da cidade, entre o fórum, os cartórios e as reuniões na frente da padaria nas quais se debatia a política local. Seu compromisso com a cidade, no entanto, não se dava ali no calçadão da praça, mas se manifestava nos botecos mais sujos. Era nos bares menos frequentados, em uma mesa geralmente solitária, que Eros bebia sua cerveja, pedindo ao garçom que trouxesse um copo limpo a cada garrafa aberta. Mas qual boêmio não leva à mesa uma velha mania?, defendiam-no os conhecidos da praça.

E foram essas as testemunhas de uma de suas grandes façanhas. Conta-se que era mau pagador - e aqui apenas relato o que está grafado eternamente na memória dos homens do lugar, baú onde repousam as histórias que andaram por anos sendo moldadas no calçamento irregular das ruas e me foram narradas durante um café numa de suas esquinas. Era, portanto, mau pagador e havia comprado a prazo uma bateria para o seu Fusca branco 73.

Difícil seria não esbarrar com o credor no meio da rua e foi o que aconteceu certo dia e na frente dos amigos. Cobrado, reagiu friamente e com incrível desapego. Ninguém entendeu quando assumiu a dívida e falou pode tirar a bateria lá do carro. Meio atordoado mas disposto a se mostrar valente, foi o cidadão simples retomar o produto da discórdia. E ali, futucando no capô do fusquinha, foi abordado por uma dupla de policiais que não acreditaram em nenhum dos argumentos de defesa daquele pobre acusado de roubar o veículo do ilustríssimo senhor doutor Eros.