02 novembro 2005

continua

Na estação reconheço os mesmos rostos que você me havia descrito. Traços de gente simples e quieta, gestos e abraços carinhosos. Na multidão, que agora estica as pernas em piso imóvel, desvio das recepções calorosas.

Caminho rumo ao Centro. Leio nas placas os nomes das ruas que você me cansou de dizer e percorro o trajeto imaginário que suas pernas desenharam um dia. Sinto o cheiro dos queijos pendurados à mostra nas mercearias da parte velha da cidade. Vejo que, mal se vai o dia, as luzes vermelhas do amor brilham nos luminosos dos hotéis baratos.

Alcanço a praça e ela já não é a mesma. Você mentiu quando falou das flores no jardim, do realejo e do lambe-lambe. Interrompo o andar apressado de um senhor e o faço tirar os olhos do jornal. Pergunto sobre o coreto e ele diz que foi desmanchado ainda no século passado, quando a seresta foi sepultada no túmulo do último flautista da cidade.

Ele continua seu lamento e o acompanho com os olhos até o momento em que desce da calçada para atravessar a avenida e em passos firmes se lança em meio aos carros. Ouço seu último gemido quando é lançado para o alto seguidas vezes por uma comitiva de limusines negras e agradeço aos curiosos que se aglomeram ao redor do corpo deixando livre o horizonte de ruas margeadas por edifícios tortos.

Desfruto este instante de solidão cabisbaixo, certo de que não tropeçarei em alguém, e esqueço que estou em território inimigo.